No Brasil ainda persiste a ideia de que saber ler é saber a descodificação pura e simplesmente da palavra escrita ou da linguagem escrita, o que é um equivoco porque saber ler é acima de tudo além de descodificar as palavrasou as linguagens escritas é saber interpretar e produzir textos com total domínio e entendimento sobre o assunto lido.
Uma pessoa que apenas lê, mas não é capaz de explicar ou escrever sobre o material lido é um analfabeto funcional, é uma pessoa que não tem a capacidade infelizmente de ler plenamente o mundo ao seu redor, é alguém que vota, mas não entende o discurso dos políticos, que lê uma bula de remédio e não percebe as informações necessárias ao paciente, enfim é uma pessoa fácil de ser dominada porque ao tomar conhecimento das leis é incapaz de interpretá-las e consequentemente de reivindicar os seus direitos.
É na escola que a criança aprende a ler e escrever, mas nem sempre a instituição escolar desenvolve no(a) educando(a) o senso crítico e na maioria das vezes esse(a) educando(a) se torna um(a) adulto(a) desconhecedor(a) dos seus direitos e deveres, portanto saber ler é desenvolver o senso crítico que nos permite reivindicar, descordar, criticar e argumentar nos tornando cidadão(ã)s pleno(a)s conhecedore(a)s dos nossos direitos e deveres capazes de lutar contra regimes ditatoriais e tiranos, políticos demagogos e currículos preconceituosos e excludentes.
Quando li o livro A Importância do Ato de Ler de Paulo Freire percebi o quanto a prática pedagógica é política, pois ao ler sobre a população de São Tomé e Príncipe percebi que mesmo antes de saber ler as pessoas já eram capazes de analisar o mundo ao seu redor e tomar decisões porque eram constantemente incentivadas pela educação que lhes era oferecida, logo o senso crítico foi desenvolvido à medida que a população ia aprendendo a ler as palavras e o mundo ao seu redor mesmo que fosse uma analise a partir de um quadro na parede.
Entre as inúmeras recordações que guardo da prática dos debates nos Círculos de Cultura de São Tomé, gostaria de referir-me agora a uma que me toca de modo especial. Visitávamos um Círculo numa pequena comunidade pesqueira chamada Monte Mário. Tinha-se como geradora a palavra bonito, nome de um peixe, e como codificação um desenho expressivo do povoado, com sua vegetação, as suas casas típicas, com barcos de pesca ao mar e um pescador com um bonito à mão. O grupo de alfabetizandos olhava em silêncio a codificação. Em certo momento, quatro entre eles se levantaram, como se tivessem combinado, e se dirigiram até a parede em que estava fixada a codificação (o desenho do povoado). Observaram a codificação de perto, atentamente. Depois, dirigiram-se à janela da sala onde estávamos. Olharam o mundo lá fora. Entreolharam-se, olhos vivos, quase surpresos, e, olhando mais uma vez a codificação, disseram: É Monte Mário. Monte Mário é assim e não sabíamos". Através da codificação, aqueles quatro participantes do Círculo "tomavam distância" do seu o mundo e o re-conheciam. Em certo sentido, era como se estivessem "emergindo" do seu mundo, "saído" dele, para melhor conhecê-lo. No Círculo de Cultura, naquela tarde, estavam tendo uma experiência diferente: "rompiam" a sua "intimidade" estreita com Monte Mário e punham-se diante do pequeno mundo da sua quotidianidade como sujeitos observadores (FREIRE, PAULO. 2009. p 43 / 44).
Ver Freire, Paulo. A Importância do Ato de Ler. São Paulo: Cortez, 2009.